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Reflexos da escravidão nas escolas brasileiras

  • matheusdesenna
  • 8 de mai. de 2021
  • 8 min de leitura

Uma das maiores abominações já existentes na história da humanidade foi o tráfico e comércio de escravos que consequentemente ocasionou a escravidão por séculos no mundo. Trazendo para a realidade no Brasil, acredita-se que os primeiros navios negreiros começaram a desembarcar por aqui em 1530 e a Lei Áurea que encerrou o período da escravidão por essas terras, foi promulgada somente em 1888, sendo assim, estamos falando de um período de mais de 350 anos e claro que um período nebuloso tão extenso, se não tratado com políticas públicas eficientes, traria sequelas gravíssimas para o cotidiano da sociedade brasileira. Como sabemos, tais políticas nunca aconteceram e os mais de 3 séculos de sofrimento ainda estão encravados e explícitos em nosso dia-a-dia.


A verdade é que o Brasil nunca teve interesses concretos em acabar com o período da escravidão. Se analisarmos friamente, talvez com relação a economia e negócios, nunca houve algo tão rentável por aqui. É triste relacionarmos isso ao sofrimento de pessoas, mas infelizmente é a verdade que jamais pode ser apagada dos livros história.


Muitos, na tentativa de justificar tamanha atrocidade, fazem a defesa de que na própria África existia escravidão entre tribos, mas vamos com calma, uma coisa é uma tribo militarmente mais forte dominar a outra e fazer com que os derrotados trabalhem de forma escrava para eles, mas mantendo-os em seu próprio país, com sua própria cultura, inseridos em sua família e em meio a outras características que já lhe são peculiares (deixando bem claro que isso também é completamente errado e não está sendo relativizado, estou somente usando como efeito de comparação), outra coisa é você arrancar ferozmente uma pessoa do seu meio de convívio, acorrentá-lo como um animal selvagem, colocá-lo a força dentro de uma navio sem condições alguma de higiene ou segurança, fazê-lo viajar muitas vezes por meses a mercê de todo tipo de constrangimento, má alimentação, castigos, longe de sua família, longe de sua língua nativa, longe de sua cultura, comercializá-lo e fazê-lo trabalhar em condições desumanas para benefício de um senhor (a média de sono de um escravo era de 3 a 4 horas por dia, o restante do dia era dedicado ao trabalho). Dá para entender a diferença?


No início do século XVIII, começando pela Dinamarca, inicia-se o movimento para que se colocasse fim ao tráfico e comércio de escravos. Movimento esse que ganha grandes proporções com a adesão da Inglaterra a partir de 1807, à época a maior potência do globo. Desde a vinda da família real portuguesa para o Brasil quase que neste mesmo período de tempo, a Inglaterra torna-se extremamente presente no cotidiano brasileiro, pois ao financiar a vinda da corte portuguesa para cá, começa a contar com inúmeros privilégios por aqui, inclusive financeiramente. Engana-se quem pensa que a Inglaterra ao abolir o tráfico e comércio de escravos de todas as suas colônias o fez por serem bonzinhos e estarem preocupados com o bem estar humano, afinal existiam muitos interesses financeiros por trás disso. Mais do que tomar tal medida em suas terras, os ingleses passam a pressionar outros países para que medida semelhante fosse tomada, a fim de que gradualmente se acabasse com a escravidão. No Brasil o entendimento era de que não existia a menor possibilidade de que isso acontecesse, pois os engenhos de açúcar, bem como outras culturas dependiam exclusivamente da mão-de-obra escrava.


A luz no fim do túnel foi a Independência do Brasil, onde nem todos sabem, mas tal medida foi tomada quase que exclusivamente por interesses da Inglaterra e sendo tal feito consumado, os ingleses passam a exercer uma quantidade ainda maior de privilégios neste país, com a contrapartida de ter financiado o movimento separatista, bem como, continuar custeando o início do Império brasileiro. A partir daí, a pressão para que o Brasil abandonasse de vez o modelo escravocrata passa a ser ainda maior. Iniciando em 1926, começam a figurar por aqui uma série de leis e como bem diz o ditado, "leis apenas para inglês ver", pois de efetivas nada tinham. Lei do Ventre Livre, Lei Eusébio de Queiroz, Lei dos Sexagenários, entre outras até chegarmos a Lei Áurea.


Estamos falando de uma parte considerável da população brasileira que ficou relegada durante mais de 3 séculos ao trabalho escravo, afinal, como introduzir essa fatia da população na sociedade? O Brasil obviamente foi pelo caminho mais fácil, "cada um que se vire por si só", ou seja, acabou a escravidão no papel, mas àqueles que se viam livres pela lei, não possuíam fontes de renda, não possuíam moradia, não possuíam estudo e na maioria das vezes não possuíam nem condições de saírem das fazendas onde nasceram, foram criados e não sabiam nem mesmo que se existia um mundo além daquilo que sempre viram. O resultado disso não é difícil de se imaginar.


A alternativa para o povo afrodescendente foi se manter em condições conforme eram as das escravidão, junto a seus senhores, devido a não terem uma alternativa de inclusão na sociedade, porém, com a migração dos povos do campo para a cidade, a situação que já não era minimamente interessante veio a piorar. Com este certo êxodo, os negros que não tinham para aonde ir, foram marginalizando-se nas periferias das cidades, criando bairros e vilas sem mínimas condições aceitáveis de moradia, higiene ou segurança. Pode-se dizer que era o que eles poderiam conseguir sem que o governo os ajudasse de alguma forma. Como sabemos, não basta moradia, é preciso trabalho para se ter o que comer, sendo assim, os trabalhos que eram preteridos pela sociedade, pouco a pouco foram se enquadrando na realidade dos pretos brasileiros e mesmo assim, não era o suficiente para absorver toda a necessidade daquela população.


Podemos afirmar então que mesmo com o fim da escravidão brasileira, os pretos continuam a ser marginalizados diante de uma sociedade que nada fez de efetivo para inseri-los adequadamente. Nas periferias onde os pretos começaram a habitar, o Estado ou àquilo que o Estado precisa minimamente proporcionar nunca chegou e por vontade do próprio Estado. Entre uma dessas coisas está a educação. Incrível pensar que após mais de 100 anos, muito do que foi presenciado lá atrás ainda acontece em muitas periferias Brasil afora.


Em meio a todo esse contexto, o preto e seus descendentes, recém saídos da escravidão não tinham acesso a educação. Seu dia precisava ser preenchido por atividades que traziam alimentação para o seu lar e infelizmente o pouco tempo que os sobrava não podia ser dedicado a escola, mas sim ao descanso para que no dia seguinte estivessem prontos para o trabalho novamente. Quando citamos isso, não estamos falando apenas dos adultos, falamos também das crianças, pois com a baixa remuneração recebida por esse povo, todos os integrantes da casa precisavam trabalhar, desde o chefe da casa, passando pela esposa e pelos filhos, independente de sua idade, de alguma forma precisavam colaborar.


As vezes é engraçado pensar que estamos falando de um passado de 100 ou mais de 100 anos atrás e que muitas dessas coisas ainda são muito presentes na realidade em que vivemos hoje. Os EUA precisou de seu "apartheid" para que a sua população preta começasse a ser de fato inserida na sociedade. Na África do Sul processo semelhante aconteceu, ocorrendo talvez um dos mais famosos movimentos em busca de direitos iguais entre pretos e brancos já existente em todo o mundo. Já no Brasil, pela percepção de que aqui não existe ou nunca existiu racismo, de que não se tem ou se quer teve diferenciação racial, as pessoas que estão no topo da pirâmide ou podemos chamar de políticos e aristocratas brasileiros, nunca consideraram ser preciso medidas para que os pretos começassem a ser inseridos na sociedade.


Com tudo que aconteceu historicamente, as crianças pretas tinham menor acesso as creches brasileiras, pois as vagas prioritárias eram para as crianças brancas. As crianças pretas não podiam frequentar as escolas primárias pois já estavam em idade de trabalhar para ajudar no sustento de casa. Se em idade de frequentar a escola primária, os pais já tinham que optar para que essas crianças trabalhassem ao invés de estudarem, imagine em outras fases escolares. É importante ressaltar que este processo ocorreu tanto nas famílias que migraram para as cidades, como nas famílias que porventura se viram obrigadas a continuar no campo. Preteridas do ensino público, com acesso quase que restrito ao ensino privado, a alguns anos atrás era raro um preto chegar a faculdade. Mais do que isso, era raro um preto "se dar bem na vida". Quando um preto era alçado nas universidades, alguma coisa de errado estava acontecendo, não era normal ele ter chegado ali naquele ambiente tão hostil a sua realidade. Ainda hoje, para cada 1 criança branca analfabeta, existem 3 crianças pretas. Em números tão simples de comparação fica difícil se ter uma real noção não é mesmo? Quando ampliamos este número podemos citar que no Brasil em torno de 9% das crianças e adolescentes pretos até os 15 anos de idade são analfabetos, enquanto entre a população branca este número é de apenas 3%.


Com a criação da Lei de Cotas em 2012, o Estado tenta reparar mais de um século de injustiças contra a população afrodescendente brasileira, buscando de algum modo proporcionar a esta fatia da população, condições semelhantes às percebidas por outras populações brasileiras. Muitas pessoas se dizem contra e consideram até mesmo uma espécie de racismo essa política nacional, porém, quando vemos todo esse histórico e contexto contra a população preta, fica evidente que em algum momento seria necessário tentar mesmo que minimamente reparar as coisas. Pesquisas apontam que o preto ao entrar na faculdade pela política de cotas, sente-se como um símbolo da vitória dessa população tão prejudicada e discriminada durante todos esses anos. Ao contrário do que muitos pensam, o Brasil é um país extremamente racista e que deixou a mercê da sociedade por muitos anos a população preta do país sem a implementação de políticas sociais inclusivas. Mesmo que com tanto tempo passado, ainda existe um abismo brutal que diferencia o acesso de pretos e brancos a educação básica no país e que consequentemente se reflete nos anos seguintes.


Passado tanto tempo, a população preta ainda sofre com um menor acesso a educação, a saúde pública, a segurança, enfim, a tudo que é relacionado ao Estado. E não custa que lembremos o artigo 6º da nossa Constituição Federal: "São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade infantil, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."


Uma pesquisa divulgada recentemente, trás como dado que se hoje no Brasil os negros que ocupam postos de trabalho igual ao dos brancos, fossem remunerados em iguais condições, mais de bilhões de reais seriam injetados a economia brasileira. Na escolas tal reflexo é percebido seja por alunos, seja por professores ou por outras pessoas envolvidas no dia-a-dia escolar. Atualmente, dados estatísticos apontam que 62% das crianças fora do ambiente escolar são pretas, enquanto apenas 63,7% dos jovens pretos de 15 a 17 anos frequentam o ensino médio. Tratando-se de um país onde 15% de sua população se autodeclara preta, estamos falando de um universo de muitos brasileiros pretos em idade escolar fora das escolas. E aqui não estamos falando de uma luta entre brancos e pretos e sim mostrando realidades que deveriam ser iguais mas que por algum motivo são distintas.


O Brasil pecou e continua pecando no que tange a sua população preta. 350 anos de privação a esse povo que sofre com as sequelas da escravidão não são reparados da noite para o dia, mas é preciso que o governo se atente a tudo que ocorreu historicamente, a fim de que se tomem políticas públicas eficientes e que de fato não fiquem somente no papel para reparar tudo que o preto sofreu nas mãos do nosso país. É dever de cada cidadão, independente de ser preto ou não preto, brigar pela devida inserção de todos os povos na sociedade brasileira a fim de que mesmo tanto tempo após o fim da escravidão seus reflexos não venham a atingir o nosso cotidiano.

 
 
 

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